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Por que pesquiso sobre discurso? (João Benvindo de Moura)

“O discurso é um tirano poderoso que, com um corpo microscópico e invisível, executa ações divinas. [...] Os encantamentos inspirados pelas palavras levam ao prazer e libertam da dor. Na verdade, a força do encantamento, misturando-se com a opinião da alma, sedu-la, persuade-a e transforma-a por feitiçaria. [...] A força do discurso em relação à disposição da alma é comparável às prescrições dos medicamentos em relação à natureza dos corpos. Assim como os diferentes medicamentos expulsam do corpo os diferentes humores e uns põem termo à doença e outros à vida, assim também de entre os discursos uns entristecem e outros alegram, uns amedrontam e outros incutem coragem nos ouvintes, outros há que envenenam e enfeitiçam a alma com uma persuasão perniciosa.”

(Górgias)

Durante toda a minha vida, tive (e ainda tenho) três grandes paixões: A comunicação, a política e a linguagem. Na verdade, são três paixões interligadas, pois não há comunicação sem linguagem (pelo menos entre os seres humanos) e não há linguagem sem ideologia, portanto, sem um caráter político.

Venho de uma família de agricultores retirantes que respirava a política. Acostumei-me desde garoto a presenciar os debates inflamados, os discursos nos comícios, alguns eloquentes, outros enfadonhos. Quando criança, fabriquei minha própria rádio: uma velha caixa de papelão com alguns buracos perfurados estrategicamente, no interior da qual eu apresentava programas, fazia publicidade e, na ausência de uma “radiola”, cantava as músicas. Tudo isso para uma pequena plateia mirim que a tudo assistia meio desconfiada. Uma verdadeira polivalência em matéria de radiofusão.

O interesse pelo estudo de línguas veio inicialmente com o espanhol motivado pela imensa literatura que consumi na adolescência acerca da revolução cubana, Che Guevara etc. Tinha certa rejeição pela língua inglesa que, para mim, era coisa do “imperialismo”. Somente muito tempo depois passei a encarar a língua do Tio Sam. A influência francesa veio a partir da leitura das obras “Madame Bovary” de Gustave Flaubert, “Les misérables” e “Notre-Dame de Paris” ou “O corcunda de Notre Dame” como conhecemos, ambas de Victor Hugo. Virei piolho de biblioteca.

Todas essas experiências foram influenciando minhas escolhas pela vida afora. Primeiro, pelo curso de Letras, opção também “influenciada” pela ausência de outros cursos no campus da UFPI de Picos, interior do Piauí. O referido campus ofereceu durante 13 anos apenas 2 cursos: Letras-Português e Pedagogia.

Tempos depois, dentro dos estudos linguísticos, conheci a Análise do Discurso, disciplina criada na França nos anos de 1960 que inicialmente relacionava a linguagem, a psicanálise e o marxismo. Sua fundação é atribuída ao linguista e lexicólogo Jean Dubois e ao filósofo Michel Pêcheux. A Análise do discurso não trata especificamente da língua ou da gramática, embora todas essas coisas lhe sejam caras. Trata exclusivamente do discurso. Etimologicamente, a palavra discurso carrega em si uma noção de curso, de percurso, de movimento. O discurso é, portanto, palavra em movimento, prática de linguagem, efeito de sentido entre locutores. Na análise do discurso há uma necessidade de compreensão da língua como construtora de sentido, como trabalho simbólico.

Muitas vezes me questionei como pessoas de origens humildes como Abrahan Lincoln, Adolf Hitler e Nelson Mandela, sem boa aparência física, sem recursos financeiros, sem parentes importantes, ou, como dizia Marx, sem os “meios de produção”, influenciaram tantas pessoas através dos seus discursos, cada um a seu modo. O que haveria de tão especial naquelas palavras? Ou, talvez, qual o mistério escondido por trás das mesmas?

Trazendo para uma realidade mais próxima da nossa, como pessoas como Lula, Francisca Trindade e Wellington Dias, cujas origens sociais são semelhantes às dos personagens anteriormente citados, conseguiram êxito político num país extremamente elitista, racista, tradicionalista, coronelista e europeizado como o nosso. Qual o segredo persuasivo existente nas palavras de um retirante nordestino, de uma negra da periferia de Teresina ou de um descendente de índios do Sul do Piauí?

A partir de tais questionamentos poderíamos nos perguntar: como o sentido é construído? Como se dá a interação entre os indivíduos? Como os saberes são partilhados numa dada sociedade? É disso que trata a Análise do Discurso. Em vez de perguntar o que esse texto significa, como o faz a Análise de Conteúdo, a AD questiona: como esse texto significa? Para tanto, faz-se necessário considerar, em primeira mão, as condições de produção do discurso. Em que contexto foi produzido? Quem o produziu? A quem se destina? Quais as imagens que o sujeito enunciador faz de si mesmo e do(s) outro(s)?

Na minha pesquisa de Mestrado, portanto, analisei o discurso institucional do PT – Partido dos Trabalhadores – desde a sua fundação, em 1980 até o ano de 2006. Através de quatro documentos oficiais do partido, lançados respectivamente em 1980, 1989, 2002 e 2006 observei como o partido construiu sentidos a partir de sua prática discursiva, como materializou seu pensamento através dos documentos institucionais, que estratégias discursivas utilizou para seduzir, disputar sentido, espaço e poder na sociedade, como construiu sua(s) identidade(s) e como apresentou sua postura ideológica através da linguagem.

Agora, na condição de doutorando da UFMG, minha pesquisa continua fundamentada na Análise do Discurso, mas se volta para a imprensa escrita piauiense. Através da Teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau, observo o contrato de comunicação existente entre a imprensa e seus leitores. Verifico como os veículos de comunicação constroem as imagens de si e dos outros; quais estratégias argumentativas utilizam; como os imaginários sociodiscursivos articulam elementos como a verdade, a tradição, a modernidade, a soberania popular, a isenção, a credibilidade etc.

Enfim, a forma como cada discurso convence, persuade, nos leva a ação ou à inércia será para mim sempre uma magia, uma atração fatal, seja no campo pessoal, sejam nas pesquisas acadêmicas.

João Benvindo de Moura

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