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“Os menino tão jogando bola”

E lá vem de novo o coitado do português brasileiro sofrer as consequências de só verem uma de suas faces (ou uma máscara): a “culta” (entre aspas, porque tenho visto muita gente culta que não usa tanto essa língua “culta”). Acontece que o MEC resolveu adotar um livro didático de português, “Por uma vida melhor”, que aborda as diferenças entre falar e escrever e ainda traz exemplos da variedade popular ao lado da variedade padrão. Um insulto aos cultos e alfabetizados desse país, né?! Afinal, quem faz concordâncias como “Os menino tão jogando bola” é gente que não estudou, gente pobre. E , para minha surpresa, descobri que eu e uma porção de gente que conheço, não estudou! Coitados de nós, não é mesmo?
A matéria da Folha, “Livro distribuído pelo MEC defende errar concordância”, no título já traz uma afirmação tendenciosa, já que o que o livro defende, na verdade, é o ensino não só da norma culta, mas também de outras variedades tão comuns no cotidiano de TOD@S nós. A Folha afirma que o livro “defende errar concordância” quando o que ocorre é totalmente diferente, porque o próprio termo “errar” é abolido no que se refere ao ensino de língua, pois o que existe é inadequação ou adequação e não “certo” e “errado”.
O que percebemos é um preconceito linguístico generalizado, acompanhado de sobremaneira de um preconceito social: não se expressar na norma culta significa que o indivíduo não estudou, logo não tem cultura e, certamente, é pobre. Esse discurso prega que as variantes que não seguem a norma culta são “piores” e marginalizadas, ou seja, quem fala assim é pior, analfabeto e excluído. E a classe, minoria no Brasil, que tem seus interesses assegurados pelos grandes jornais que se admitem “cultos” e “politizados”, não admite ver seu ‘falar’, tão digno e tão ‘puro’ ser tratado ao lado das variantes da massa de miseráveis indignos e impuros. 
Ora, a imensa maioria da população brasileira, e acreditamos, nem mesmo quem se diz falante da norma culta, utiliza tal variedade em todas as situações do dia a dia. Logo, não usar a norma padrão não significa ser analfabeto, pois, quando falamos, estamos inseridos em situações comunicativas e, normalmente, sabemos distinguir quando é exigido uma linguagem mais próxima do que se entende por ‘padrão’ e quando podemos utilizar sem nenhum problema variáveis linguísticas rotuladas por muitos como ‘erros’ . 
Em muitas situações do dia a dia, além de pedantes, pareceríamos ridículos utilizando uma norma dita ‘culta’, considerando todas as ‘recomendações’ da nossa atualizadíssima Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Não esqueçamos que esta, até hoje, preconiza uma forma pronominal para a segunda pessoa do plural que, até onde atestamos, há muito não fazemos mais uso... Então, se norma culta for aquela que segue os preceitos da GNLP, não se usa norma culta no Brasil.
O que esses jornalistas das grandes empresas e os que defendem, certamente porque utilizam, a norma culta fazem é  esquecer que eles mesmos não usam a concordância em determinados momentos, que muitos não falam todos os “s” dos plurais e nem conjugam os verbos concordando com a 2ª pessoa do singular e plural. E nem se dão conta que a língua é viva e que muitas das concordâncias defendidas e prescritas na gramática não são mais utilizadas pelos falantes.
Por isso devemos ter muito cuidado ao dizer que uma concordância é errada ou que o modo de falar de fulano é pior e que ele fala assim porque é pobre e analfabeto. O Brasil na verdade é Brazis, em que coexistem vários “dialetos” e  a norma padrão é uma forma de usar a língua que se adequa a determinadas práticas da nossa vida social. 





2 comentários:

  1. Oh, gente, mais é um auê que está sendo feito em cima disso! O pior mesmo é que chega a doer no juízo, Bruno, quando paramos para analisar o porquê de tanta preocupação em cima desse livro que, admitamos, é um marco na história da educação brasileira... Ele não faz muito, mas corajosamente desmistifica muito discurso preconceituoso que apenas tem se propagado ao longo dos séculos... Não esqueçamos da distinção entre o latim clássico e o vulgar, já no Brasil, do português e do ‘pretuguês’... Exemplos históricos dessa diferenciação que, vejamos, não é aleatória: tem raízes histórico-sociais tão perversas que chega a revoltar quem guarda um mínimo de complacência pelo próximo (ainda que este não esteja tão próximo!).

    Pois bem! Como falantes (cultos/incultos, já que sabemos nos virar numa e noutra variedade!), continuemos navegando nessa língua... E (a melhor parte!) explorando todas as possibilidades que temos de usá-la distintamente! O fundamental mesmo é que nunca encontremos um porto, um ponto fixo, firme, estanque, para abortarmos nossa tão encantadora e instigante viagem!

    Parabéns, Bruninho!!

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  2. O lenga lenga sobre esse livro já era esperado. Não é uma causa e sim sintoma de um problema que a universidade parece não se dar conta: afinal de contas, a universidade forma profissionais pra que? forma profissionais pra quem?
    Os estudos sobre variação linguística são antigos, e já renderam projetos como atlas, como glossários...e mais o que quer seja. Só o Atlas Linguístico do Maranhão está em andamento há mais de 10 anos e me fica a pergunta: esses resultados encontrados serviram de que para a comunidade? Pelo menos, chegaram a ela?
    A rejeição por um livro como esse, que aborda um tema já discutido a exaustão na academia, revela o abismo que há entre a pesquisa e o exercício da docência.
    Acredito que a discussão não se deva restringir ao papel do livro didático em sala de aula (acredito quanto a este tema, só tangencie), mas sobre que se problematize (mais uma vez) o papel do professor.
    Será que os próprios professores entendem a questão da variação linguística? E se entendem, conseguem fazer o aluno perceber - mais que isso, fazê-lo entender e respeitar?
    Em um contexto de educação, em que oralidade e escrita travam um duelo de nunca acabar - e pesquisador não quer se meter pra apartar a briga, me parecem claras as respostas.
    É como costumo dizer: universidade e moda são mais parecidas do que se pensam. As peças podem ser magníficas, mas é ardua (impossível?) a tarefa de transpoh-las da passarela para as ruas.

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