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Entrevista de Marcos Bagno ao Diário do Pará


Domingo, 03/03/2013, 08h27

Considerado um dos maiores linguistas do Brasil, com doutorado em Filosogia e Língua Portuguesa pela USP, atualmente Marcos Bagno é professor adjunto do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB). Entre outras coisas ele defende que no Brasil há muito tempo falamos o “brasileiro” e não o português. Como ele mesmo se define, além de cientista da linguagem Bagno também é militante: se opõe contra quem oprime o outro pelo exercício do falar. Segundo argumenta num dos seus livros mais famosos, “Preconceitos linguísticos: o que é, como se faz”, ele diz que nenhuma pessoa gozando de plena saúde mental, com mais de quatro anos erra português, e o que chamamos de “erros” não passam de outras variantes linguísticas com gramática e lógicas próprias que vão influenciar a gramática normativa. Uma vez que, para que hoje escrevamos “pinguim” e não “pingüim”, “foto” e não mais “photo”, foi a vida própria da língua que assegurou isso - e a gramática normativa referendou.

Ele e os demais linguistas brasileiros, porém, recebem duras críticas de pessoas como o professor Pasquale Cipro Neto, que defendem o uso da norma dita “culta” em programas televisivos. Marcos Bagno argumenta que a origem dessa debate é antes de tudo sociológico, uma vez que a imposição de uma língua oficial é costume de nações colonizadoras, como outrora foi o império romano, cujo latim ganhou vida própria e gerou outras línguas como o português nas mãos dos portugueses - que por sua vez impuseram a outrora considerada língua marginal como a “certa” para populações nativas e escravos trazidos da Áfricano processo de colonização. Confira a entrevista:

P: Observamos que no Brasil há formas muito diferentes de se falar, com diversos sotaques e gírias. Entretanto existe a máxima transmitida por muitos educadores de que no Brasil só há uma forma certa de escrever e falar. Como o senhor avalia essa questão?

R: É um problema grave achar que no Brasil só se fala português quando na verdade nós sabemos que existem quase duzentas línguas faladas no nosso território, das quais cento e cinquenta ou mais línguas indígenas, fora as línguas trazidas pelos imigrantes. Além disso, o próprio português brasileiro, como qualquer língua do mundo, apresenta variação. O problema é que somos frutos de um processo colonial. Então impomos aos índios e escravos negros uma língua única, como língua principal. Esse mito do monolinguismo tem muito a ver com a tentativa de criar também um mito de unidade nacional, de um território só, um povo só, uma língua só, quando deveria ser ao contrário. A multiplicidade deveria ser valorizada como são valorizadas as outras riquezas culturais que nós temos. Cada povo, cada região tem a sua maneira de falar e isso deveria ser considerado uma riqueza do nosso patrimônio, e não um problema a ser resolvido.


P: Há pessoas como Caetano Veloso e professor Pasquale Cipro Neto que acusam os linguistas de populismo, pois defenderiam o suposto uso errado da língua ao invés de ensinar o “certo”. Como o senhor lida com isso?


R: Tem que haver debates porque a linguagem é um palco de conflitos e disputas de ideias, mas nesse grupo que você mencionou eu só consigo identificar duas coisas: ou é ignorância ou é má-fé, porque se a pessoa sabe ler, e ler bem, e lê os nossos trabalhos, ela vai ver que em nenhum momento algum linguista sério brasileiro diz que não é para ensinar as pessoas as formas tradicionais de falar, as formas requintadas, a linguagem literária etc. A nossa sociedade é muito centrada no dualismo de certo ou errado, o preto ou o branco; não tem meio termo, né? Defendemos que sejam respeitadas todas as maneiras de falar, pois não há base científica para justificar afirmações de que uma pessoa fala mais certo ou errado que a outra. Não defendemos que as pessoas estudem para falar do mesmo jeito que falavam antes de estudar, pois a escola tem que ter o papel de ampliar o repertório linguístico. Mas essas pessoas as quais você se referiu servem exatamente de porta vozes das ideologias conservadoras.

P: Então, além de cientista da linguagem o senhor se considera um militante?


R: Sem dúvida. Os linguistas têm um papel social e político a cumprir. Não adianta fazer pesquisas e grandes descobertas se isso ficar reduzido ao público acadêmico. Como a questão da língua é muito forte na vida social, principalmente no que diz respeito à educação, nós da academia temos uma obrigação política e moral de levar os nossos conhecimentos a um público mais amplo, difundir essas ideias, contribuir para combater as formas de discriminação pela linguagem e para a formação dos professores mais próxima das correntes contemporâneas de ensino de línguas.


P: O senhor critica em muitos dos seus livros afirmações de que se “fala errado” no Brasil, sobretudo nas periferias e interiores. Para o senhor isso são mitos que resultam em preconceito linguístico. Então quais são os fatores que contribuem para reproduzir tais ideias?

R: Enquanto nós temos toda uma produção científica muito importante no Brasil em torno das questões de linguagem, enquanto as políticas educacionais já há quinze, vinte anos com as suas diretrizes, seus parâmetros, já vêm adotando outros critérios ao ensino de língua, os meios de comunicação ainda reservam espaço para aquelas pessoas que falam apenas baseados na gramática normativa e não em algo científico. Enquanto ficarem falando na mídia apenas “assim é errado” ou “assim é certo”, continuaremos estimulando opressão contra quem utiliza outra variante da língua, que tem uma gramática própria.


P: Então o senhor acredita que em vez de educação existe imposição de uma linguagem padronizada?

R: A imposição da ideologia das classes dominantes se faz em todas as áreas. Na religião, na maneira de se vestir, na maneira de se relacionar sexualmente etc. A questão da língua vem também nesse mesmo pacote. Eu sempre digo que o preconceito linguístico na verdade é só um reflexo do preconceito social. Hoje em dia, como não pega mais muito bem a pessoa ser racista, sexista e outras coisas assim, a língua continua aí servindo de instrumento para discriminação. Você não pode discriminar a pessoa porque é negra, então você diz que ela fala errado, o que já satisfaz a vontade de ofender. Essa que é a perversidade do preconceito linguístico.

P: E como o senhor avalia os sotaques representados pelas novelas e filmes? O senhor não acha que existe certa carnavalização na representação de falas na teledramaturgia?

R: Sim. É precisamente isso. Ao longo da história sempre houve uma polarização entre a cidade e o campo. O nordestino, o nortista, o interiorano, o caipira é sempre quem vai ser o motivo de chacota. Novelas mostram personagens nordestinos quase sempre feitos por atores que não são nordestinos imitando e falando um sotaque que, eu sempre digo, deve ser do nordeste de saturno, porque morei sete anos lá e nunca vi ninguém falar daquele jeito, com aquela coisa estereotipada, grotesca. A exemplo da novela “Senhora do Destino”, em que a personagem da Suzana Vieira morava no Rio de Janeiro há quarenta e cinco anos e ainda falava como se tivesse chegado ontem de Pernambuco, o que é impossível.

P: Como é que o senhor avalia essa questão do ensino da língua portuguesa nas escolas de modo geral?


R: Esse é um problema muito antigo na história da educação brasileira, porque as pessoas concebem língua portuguesa como uma coisa que é muito distante da realidade. Então, quando você tem que aprender ou estudar uma coisa com a qual você não se identifica realmente fica muito difícil. Quando nós pudermos passar a trabalhar com a língua do dia a dia, a língua que é usada inclusive na literatura contemporânea, nos meios de comunicação, acho que a coisa vai ser menos complicada.


P: No Brasil as pessoas têm dificuldade para estudar a língua nativa nas escolas. Que orientação o senhor dá para que estudar português seja menos traumático?


R: As universidades brasileiras não preparam bons professores de português. O próprio nome do curso: “Letras”, com esse cheiro de naftalina que ele tem, já é um problema sério. “Letras” é uma coisa do século XIX, quando as pessoas iam estudar grego, latim, poesia clássica. Hoje em dia nós temos que ter estudos da linguagem, que é outra coisa. E nesse curso de Letras a gente ensina muita coisa que não é interessante para o futuro professor e também deixa de ensinar muita coisa importante. A universidade precisa se conscientizar de que a vocação natural do estudante de Letras é ser professor e tudo que for ensinado deve ser direcionamento para o ensino, para a sala de aula. Nós temos que dar uma boa formação de base pra ele em seguida enfrentar a sua missão de professor. Hoje temos excelentes livros didáticos no mercado, mas os professores não têm formação pra trabalhar com eles.

(Diário do Pará)

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