(Sírio
Possenti)
As questões em torno das línguas envolvem
ramificações diversas. Estão implicados problemas sociais, históricas,
culturais, morais, políticos. Ideológicos, portanto, em grande medida.
Acrescente-se uma tradição que tem força desproporcional. Não propriamente a
tradição, mas a representação imaginária da língua a que ela induz.
Simplificando, acredita-se geralmente que a língua antiga é sempre melhor que a
atual, mesmo quando é fácil provar que todas as épocas repetiram a mesma
ladainha contra a decadência.
Em nenhum setor da vida social este tipo de
argumento tem tanta força. Basta verificar como as sociedades tratam outros
domínios. Veja-se a aceitação relativamente tranquila de novos hábitos (vida
sexual mais livre), de novos objetos de consumo (TV, celulares, novos tipos de
roupa) e de novas realidades (tipos de família e de trabalho).
É claro que há diferenças notáveis nas diversas
sociedades. Basta lembrar os debates sobre “imposições” relativas às vestes das
mulheres árabes, notadamente sobre a obrigação de cobrir o rosto. Mas vale
lembrar os debates sobre o biquíni e suas variações, ou sobre a minissaia, há
cerca de 60 anos. E quem hoje usa jeans em qualquer ocasião não tem ideia do
que esta roupa significou nas décadas de 60 – 70 do século passado.
É por causa de vieses culturais ou ideológicos que
fatos que parecem novos causam reações iradas. Discute-se “presidenta” (e casos
conexos, como o tratado aqui na semana passada) como se a língua fosse
imutável. Não se vê que ela está mudando diante de nós. Pior: apela-se para um
catálogo (a gramática) mesmo nos casos em que ele contradiz o senso comum
(ligado àquela tradição imaginária) e avaliza formas que muitos pensam que
estão sendo inventadas.
Este é um lado da questão: as ideologias se
manifestam claramente (às vezes, rugem, ameaçam) diante de qualquer novidade,
ou do que parece ser uma. Mas há também outras questões, aparentemente menores,
e que por isso raramente são discutidas. A principal razão é que demandam
alguma especialização, embora não muita. Supõem alguma leitura, em certos
casos. Mas, em outros, bastaria que a apostila da quinta série tivesse sido
lida corretamente.
Dou dois exemplos.
Está no ar uma propaganda que pode ser resumida
assim: um padre chega a um posto de gasolina, é recebido por um funcionário que
lhe pede que benza algumas coisas, da loja de conveniência mais do que
propriamente aos serviços ligados ao carro. O padre pergunta se pode benzer
também a bomba de gasolina. Ao que o funcionário retruca: – Não, padre.
Gasolina batizada, só no posto do outro lado da rua.
O redator do texto passou de benzer para batizar
aparentemente sem se dar conta da radical diferença entre essas palavras.
O que é mais relevante é que “batizar” adquiriu uma conotação de impureza
(gasolina batizada é gasolina à qual se adicionou algum ingrediente que a
torna menos pura, por exemplo). Deve ser a expansão de uma metáfora mais
básica, que implicava alguma mistura de água (afinal, é com água que se
batiza). Lembro-me de ter ouvido falar em leite batizado, na minha infância, o
que queria dizer que alguém tinha acrescentado água ao leite. O dicionário
Houaiss registra esta acepção: “adulterar (líquido), misturando-lhe outro
líquido (p. ex. água)”. Seu exemplo é “batizar um vinho”.
O segundo caso tem a ver com a forma como foi
noticiada a lei aqui comentada na semana passada. A Folha de S. Paulo (Painel,
12/04/2012), tratou como “flexão do sexo da pessoa diplomada” as formas que
devem constar nos diplomas. Ora, não existe flexão de sexo. Só de gênero. O que
acontece – e isso pode explicar o erro do jornal – é que há casos em que
existe uma relação clara entre gênero gramatical e sexo biológico: menino
é tanto uma palavra masculina (gramática) quanto se refere a jovens machos da
espécie humana (biologia); juíza é tanto uma palavra feminina (gramática)
quanto designa uma mulher que segue certa carreira (biologia). Etc. A lei afeta
o gênero, e não o sexo da palavra que vai para os diplomas. Falar de gênero em
vez de falar de sexo até pode estar de acordo com uma forte tendência cultural.
Mas falar de sexo em lugar de gênero (gramatical) é só um erro.
São detalhes? Pode ser. Acontece que erros
análogos, conforme o campo, derrubam um avião ou fazem explodir carros
exatamente num posto ou podem provocar a troca de um órgão a ser extirpado numa
cirurgia.
***
PS – Depois de concluído este texto, deparei-me com
a seguinte historinha, publicada em “Tiroteio”, depois das notas do Painel da
Folha de 14/04/2012): “Meu dentista hoje, lendo o jornal, me cobrou por não ter
tido a ideia genial de apresentar um projeto de lei de tal importância, porque
ele sempre sonhou em ser chamado de dentisto”. A declaração é do senador Aécio
Neves, ironizando a lei que obriga instituições de ensino a emitirem diplomas e
títulos com a flexão de gênero do agraciado, informa o jornal.
O texto mereceria diversos comentários. Faço dois:
a) a Folha tratou corretamente da questão desta vez: flexão de gênero; b) o
dentista de Aécio Neves – e talvez o próprio senador, que, tudo indica,
avalizou sua posição – deve ter faltado às aulas sobre gênero. O erro
mais elementar que se pode cometer em relação a este tema é supor que haja
flexão de masculino em português. Qualquer que seja o final da palavra, ele não
tem nada a ver com marca de gênero masculino! É simples estultícia propor
formas hipotéticas como *presidento, *dentisto e *crianço, qualquer que seja a
posição ideológica do bípede.
São fatos: a) algumas palavras – tipicamente
relativas a seres vivos – podem ter flexão de feminino (como menino – menina);
b) em algumas duplas, a forma feminina não é flexão da masculina (boi – vaca;
homem – mulher); c) eventualmente, há formas femininas que são flexões de
masculinas sem que haja qualquer relação com sexo (bolso – bolsa; saco – saca);
c) algumas palavras referem-se tanto a indivíduos masculinos quanto a
femininos, independentemente de seu final (criança é sempre gramaticalmente
feminina). Em suma: se houver flexão, a forma feminina recebe o morfema –a
(existem formas alternativas, raras, como atriz, poetisa). Mas simplesmente não
há flexão de masculino em português. *Dentisto é uma aberração.
É verdade que crianças (!) podem achar que o
masculino de “princesa” é “princeso”. Mas elas podem apelar para dois
argumentos em sua defesa: a) são crianças; b) as formas masculina e feminina
(príncipe / princesa) não são uma dupla morfológica. Espero ter o direito de acreditar
que Aécio e seu dentista perderam os dentes de leite.
Oxalá o dentista de Aécio não pense que os caninos
do senador são de fato dentes de cachorro. E que não proponha que Aécio mude
seu nome para Oécio, achando que o início é um artigo feminino.
Eu me pergunto como foi possível que tamanha
burrice tenha atacado, no mesmo dia, dois cidadãos portadores de diploma de
curso superior.
(http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2012/04/19/e-muita-imprecisao/)
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