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Cidadãos 365 dias por ano

(http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,cidadaos-365-dias-por-ano,542770,0.htm)


Para sociólogo, a internet e as redes sociais online vêm criando uma nova opinião pública,[br]que não engole mentira, não tolera promessas, não aceita líderes analógicos. Faz acontecer

25 de abril de 2010 | 1h 48

Christian Carvalho Cruz - O Estado de S.Paulo

A política como conhecemos hoje pode ser, muito em breve, um retrato embolorado na parede. E o político profissional, um desempregado irremediável, com saudade dos "bons tempos" pré-internet. Não, essa não é a última do admirável mundo novo. É a opinião de alguém que o acompanha com olhos de cientista: o sociólogo italiano Massimo di Felice. Doutor em Ciências da Comunicação, especialista em mídias digitais, ele leciona Teoria da Opinião Pública na Escola de Comunicação de Artes da USP. Acredita que a humanidade vivencie neste momento algo tão grandioso quanto o surgimento da prensa de Gutenberg no século XV: é o tempo em que a web vai levar ao desaparecimento do tipo de política e de político que existem hoje.

Para afirmar isso ele não leva em conta apenas a tecnologia em si, gelada em seus inesgotáveis twitters, orkuts e facebooks. Seu objeto de análise é a nova realidade que está nascendo daí, vertiginosa e quase silenciosamente. "A internet e as redes sociais online estão criando uma nova democracia e uma nova opinião pública." O que é particularmente interessante em temporadas como esta, de caça à tal opinião pública empreendida pelos institutos de pesquisa que tentam medir os humores e os pendores eleitorais dos brasileiros.

Mas alto lá com os antigos conceitos, previne Di Felice. "Essa opinião pública que está surgindo não quer ser chamada a opinar apenas de quatro em quatro anos. Ela participa, colabora, difunde ideias para mudar seu território cotidianamente. É cidadã 365 dias por ano. Está fazendo acontecer o que os políticos só prometem." O efeito imediato disso - para as eleições presidenciais de outubro - será mínimo, ele reconhece, dada a predominância, ainda, da opinião pública televisiva no País. Mas no futuro será algo decisivo.

Na entrevista a seguir, Di Felice empreende um passeio pela história e o desenvolvimento da opinião pública e, otimista, explica aonde, agora cada vez menos analógica, ela pode nos levar.

O que é opinião pública?

É um conceito que nasceu com a substituição da sociedade feudal pela sociedade a contrato social. Nasceu com a destruição do modelo baseado no rei que era rei por ter sido colocado no trono por Deus (e, por isso, emanava leis inquestionáveis) e com o surgimento dos primeiros mercadores que deram origem à burguesia. Foi uma passagem econômica, social, cultural e política. A sociedade que nasce daí não é mais assentada em valores divinos, "justos", e sim em códigos racionais, que tem mais a ver com a necessidade de organizar as coisas ao gosto da nova classe que ascende ao poder e vai fazer leis para defender seus interesses. Serão, portanto, leis "injustas". Mas, como elas podem ser questionadas, afinal não vieram do poder divino do rei, haverá a necessidade de lutar para mudar tais leis. Nessa imperfeição está uma das características da sociedade a contrato social, que cria pela primeira vez a separação clara entre sociedade civil e Estado.

Então a opinião pública é filha da democracia moderna?

Ela é o alicerce da democracia moderna. Não é apenas a expressão dela, um instrumento a mais. Não há democracia sem conflito, sem opinião. E o que resulta dessa passagem do feudalismo para o mercantilismo burguês é uma sociedade dada ao conflito, a tal sociedade civil - um conjunto de indivíduos, grupos, etc., que se reúnem contra o Estado. Então, é nessa imperfeição que se desenvolve o conceito de opinião pública, não só como lugar de divulgação, mas de elaboração contínua de ideias. É fácil compreender o porquê disso. Com seu dinamismo econômico, a sociedade a contrato social necessita de transformações constantes de valores. Isso muda completamente o comportamento das pessoas, elas passam a valorizar as mudanças, o progresso, contra a estagnação pré-definida por seu nascimento, como ocorria no modelo feudal.

Esse conceito de opinião pública se mantém até hoje?

Ao longo da história ele foi contestado por uma porção de teorias, principalmente depois do surgimento da mídia de massa e do uso que o nazismo, o fascismo e regimes autoritários em geral fizeram dela. Isso levou muitos autores a pensar que a opinião pública era só um doutrinamento da população. Ela teria tão somente a opinião que o status quo quisesse que ela tivesse e manipulava para conseguir. Para esses autores, opinião pública é alienação. Por aí caminhou Adorno (Theodor Adorno, filósofo alemão), chegando a Bourdieu (Pierre Bourdieu, sociólogo francês), para quem a opinião pública simplesmente não existe. Ele dizia isso, na verdade, como provocação. Na França da época, anos 60/70, ele queria questionar o uso demagógico que se fazia das pesquisas de opinião. Todas as ações dos entes públicos e privados eram justificadas por pesquisas de opinião. E Bourdieu vem dizer que essas pesquisas não davam necessariamente a opinião das pessoas, davam a opinião que as pessoas tinham formado a partir do doutrinamento. Portanto, a opinião pública não existia.

E nos dias de hoje, ela existe?

Existe, mas de um jeito totalmente diferente. Na minha avaliação, a opinião pública muda de caráter de acordo com a tecnologia informativa de uma época. No tempo da oralidade, tínhamos os filósofos, os sofistas. Com Gutenberg e a sua máquina de reproduzir grande quantidade de páginas, surge a opinião pública dos tempos modernos, mais ampla, instigada a debater pelo acesso mais fácil ao conhecimento. Depois, a mídia de massa - jornais, rádios e TV - dá origem às democracias nacionais, à esfera pública do tamanho de uma nação. Afinal, a mídia de massa consegue atingir toda a população ao mesmo tempo. Aí chegamos aos tempos atuais, à internet. E a coisa vira de cabeça para baixo. A internet cria uma arquitetura informativa absolutamente distinta das anteriores e, mais do que isso, cria um novo tipo de democracia e um novo tipo de opinião pública.

Pode explicar melhor?

Com a internet, passamos da democracia opinativa para a democracia colaborativa, na qual todo cidadão é chamado não a mudar o mundo, a fazer revolução, nada disso. Ele é chamado a ter um impacto na sua realidade próxima. Se olharmos para o teatro grego, os livros, os jornais, o rádio e a TV notamos que o modo de transmitir as informações se manteve constante. O ator de teatro fala, o público ouve em silêncio; no final aplaude ou vaia, ou seja, opina. Na TV é a mesma coisa. Quando assistimos a um debate eleitoral os candidatos falam e nós acompanhamos tudo passivamente e depois vamos votar - opinar - sobre propostas e programas de cuja elaboração não participamos. É a democracia baseada na opinião. O cidadão é cidadão na medida em que ele opina de quatro em quatro anos. A internet inaugura um tipo de democracia qualitativamente diferente.

Como ela funciona?

Primeiro, a comunicação em rede é uma tecnologia que pela primeira vez disponibiliza não só o acesso a todas as informações como também possibilita que cada indivíduo crie conteúdo e poste esse conteúdo com o mesmo poder comunicativo dos outros meios. Tecnologicamente, um blog tem o mesmo poder comunicativo que a CNN. Isso está educando o cidadão não apenas a opinar, mas a criar debate e a discutir ideias que se espalham velozmente pelo mundo. São as chamadas redes sociais, redes de cidadãos que se reúnem por terem determinadas afinidades e passam a trabalhar online para transformar a sociedade pela proposição, discussão e implementação de ideias. Primeiro no seu território, sua rua, seu bairro, sua cidade, depois no país e mundo. Chamamos isso de net-ativismo. Não se trata de uma questão ideológica, de fazer a revolução com a ajuda da internet. Não é isso.

E que tipo de opinião pública está sendo gestada nessa era de net-ativismo?

Uma opinião pública que não quer ser só opinativa. Não quer só opinar com base numa pauta estabelecida pela mídia e pelos políticos. A rede está criando, de fato, uma nova realidade em que as pessoas se afastam cada vez mais da política partidária, do debate político profissional, porque acham que isso não resolve nada. Meus alunos têm total desinteresse pelas questões políticas tradicionais, mas de maneira alguma podem ser chamados de alienados, porque estão em redes sociais, integram grupos que trabalham com reciclagem de lixo, inclusão digital, acesso à informação. Estão tentando modificar o seu território 365 dias por ano. Eles são cidadãos o ano inteiro, não só a cada quatro anos. Para esse pessoal o voto é a última coisa na qual eles estão pensando. A lógica da web não é piramidal, não prevê um líder. A palavra-chave é colaboração. Assim, se há alguém que eles enxergam como representante, é necessariamente alguém que esteja nessas redes sociais desde sempre, discutindo, propondo, ajudando a levantar verbas para projetos. O que eu estou tentando dizer é que a política analógica é obsoleta, porque unidirecional. Podemos chamar isso de fascismo se adotarmos a etimologia grega da palavra "fascio", que significa seta, algo que aponta, direciona. Estamos no caminho contrário. Pode levar 10, 20 anos, mas estamos indo claramente na direção de uma democracia totalmente colaborativa.

Essa nova ordem já deve influenciar as eleições deste ano?

Provavelmente não. Mas estou certo de que, nesta campanha presidencial, teremos surpresas vindas do mundo digital. A web será um lugar de desmascaramento. Esse movimento é maior do que imaginamos no Brasil. Um sinal claro disso é que já há no País mais gente usando a internet para acessar redes sociais do que para ver pornografia. Temos um curso de pós-graduação muito procurado por pessoas que vão trabalhar com marketing político. Os alunos perguntar a mesma coisa: "Como eu uso o Twitter para ajudar meu candidato a vencer a eleição?" Eu digo: "Você não pode. Se entrar com essa intenção a mesa vira sobre você".

Por quê?

Imagina só isso: o político utilizando a web como utiliza a TV - para mentir, basicamente. Essa é muito boa (risos). Na rede, uma mentira dura dois minutos. E, uma vez descoberta, centenas de pessoas vão ter o prazer de denunciá-la. Isso aconteceu com o Lula. Um dia ele resolveu que queria ser Barack Obama e fez um blog. Só que não permitiu comentários. Poos alguém duplicou o blog dele num espaço aberto para comentários. Uma lição de que não dá para se aproveitar da internet dessa maneira. Uma vez dentro da rede ele terá de se submeter às regras dela, que não têm nada a ver com as regras da TV. O problema é que os políticos, seus estrategistas e marqueteiros querem transferir o passado para o novo. Eles não têm a menor noção dessa nova democracia, dessa nova opinião pública que está nascendo. Querem entrar num contexto no qual o político é visto com maus olhos. A imagem dele é negativa, porque tradicionalmente ele representa o contrário do que se faz ali. Ele tem uma proposta pronta e, através da sedução, busca obter consenso da maioria da opinião pública para se eleger. A comunicação parte dele e volta para ele. A internet permite outro modelo: que ele apresente sua proposta, que vai ser continuamente debatida, modificada e aprimorada - e daí vai nascer o consenso.

Quer dizer que no futuro os candidatos a representantes do povo podem surgir das redes sociais da internet?

E é provável que eles sejam completos desconhecidos para quem estiver fora dessas redes. A função do político tradicional tende a desaparecer. Não vai ter mais aquela coisa de ele prometer fazer, porque a nova opinião pública formada por essas pessoas conectadas em redes sociais já está fazendo sem ele.

Mas qual o peso real dessa nova opinião pública em termos eleitorais no Brasil?

Por enquanto, pequeno. A opinião pública cobiçada pelos políticos é a televisiva. Aquela suscetível à propaganda e ao marketing político. O cenário está mudando rapidamente, mas quem vence eleição ainda são os marqueteiros. A TV tem regras precisas que são dominadas com perfeição por eles. Quanto mais o político se submete ao marqueteiro, maior a sua chance de vitória. Então, dizer que a Dilma não tem experiência em cargos executivos, por exemplo, pesa pouco para essa opinião pública televisiva. Já ela fazer plástica ou, do lado de lá, fotografar o Serra em pose de Obama, com a mão segurando o rosto, pedir para ele sorrir mais em público, isso sim tem impacto na opinião pública televisiva. O fato é que nem Serra nem Dilma são capazes de conquistá-la sozinhos. Ambos dependem dos seus marqueteiros.

Pesquisa eleitoral que ouve 3 mil pessoas capta o que pensa a opinião pública?

No contexto atual de política do espetáculo, política que associa aos conteúdos as imagens televisivas, deve-se reduzir a importância normalmente atribuída às pesquisas de intenção de voto. Uma vez que a política deixa de ser doutrina ideológica para se assumir como arte dramatúrgica, a disputa eleitoral se torna algo muito próximo de um reality show. E aí o que vale é o excesso e a surpresa, a presença midiática, o ataque ao adversário, a construção de uma imagem que se pretende vencedora.

As enquetes mostram que 60% dos eleitores não sabem dizer espontaneamente o nome de um pré-candidato à Presidência da República. O que isso significa?

Significa o afastamento da política do público. Não do público da política. A política partidária, feita por lobbies preocupados apenas em se manter no poder, não interessa, cansou. E não é por motivos ideológicos, já que no fundo as diferenças entre políticos e partidos são muito pequenas. É porque a humanidade se deu conta de que a classe política é um grande câncer, no mundo inteiro. A política tradicional é feita pelas pessoas menos qualificadas - reservadas as devidas exceções, obviamente. Só que do outro lado, na rede, há cidadãos ativos, conscientes, exercendo sua cidadania diariamente, que não entram nesse jogo antigo. Isso explica as altíssimas taxas de abstenção nas eleições na Europa, que beiram 50%. A população está cansada e, por meio da internet e das redes sociais, quer reformular isso. Me parece que temos agora a alienação dos políticos em relação a essa nova opinião pública, à política real, nas quais a sociedade cada vez mais organizada na web está construindo uma realidade melhor, independentemente das disputas eleitorais.

A opinião pública brasileira topa uma presidenta mulher?

Não. A sociedade brasileira é profundamente machista. Aceita no máximo uma mulher no comando do governo municipal. Mas para chefiar a nação acha que é demais. Já na nova opinião pública que está se fortalecendo na internet as regras são outras. A imagem, o gênero, são coisas que não têm a menor importância. O que faz a diferença é a participação ativa, as ideias postas em discussão, a disposição para o debate contínuo. E o melhor desse modelo é que pela primeira vez está se dando voz, de fato, aos excluídos, à massa das periferias. Estamos diante de algo tão grande quanto a prensa de Gutenberg.

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