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Ensinar gramática? (Sírio Possenti)

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4338721-EI8425,00-Ensinar+gramatica.html

(Como o texto sobre "pra mim sê" deu muito pano pra manga, apresento hoje uma versão que, espero, seja mais clara).

Um professor de português pode ser mais ou menos conservador (em sentido técnico) em relação a certas formas linguísticas. Sua atitude pode depender de sua experiência linguística e/ou de suas convicções teóricas. Provavelmente, nenhum professor pensará que não precisa corrigir formas como "Nóis foi", mas é possível que haja quem pense que não é necessário corrigir (se o fato for percebido!) formas como "É comum surgir equívocos no uso dos pronomes pessoais" (encontrei essa frase num site de ensino de português correto, numa aula sobre pronomes pessoais depois de "entre") ou "Foi descoberto duas minas de carvão".

Há casos que se tornam paradigmáticos, porque são muito citados como exemplos de erros que ninguém deve cometer. Um deles é "Para mim fazer", que Eduardo Martins cita em quinto lugar entre os cem erros mais comuns (Manual de redação e estilo, O Estado de S. Paulo), embora, curiosamente, não o cite entre os dez mais.

Quando um erro é muito comum, quando quase todos o cometem, mesmo falantes cultos, pode-se ter duas reações: a) achar que todos são ignorantes e que o mundo está acabando; b) tentar uma explicação.

Em outros campos, é comum que se tente explicar o que ocorre: por que as chuvas inundam tanto? por que houve terremotos no Haiti e no Chile? por que as capivaras estão se multiplicando? por que houve uma crise econômica em 2008 (e qual o papel dos subprime no episódio)? por que a língua geral desapareceu?

No caso das línguas, é comum que apenas se diga que se deve falar assim e não assado (com base num manual de cerca de 15 páginas!!). Talvez seja uma das razões pelas quais os erros mais constantes são exatamente aqueles de quais mais se trata e que são mais corrigidos (regência de assistir, conjugação de haver, concordância nas passivas sintéticas...): todos estudam isso em todas as séries, não há prova sem esses temas e (quase) todos continuam assistindo o jogo em que haviam cinco bolas em campo e não se via os gandulas ajudando. Ah, e fazem anos que é a mesma coisa...

Não seria melhor tentar entender o que acontece? Vejamos o caso de "para mimfazer". Estão envolvidos pelo menos três fenômenos (não acho que a ignorância ou o descaso dos falantes seja o quarto fator): um fenômeno estrutural (sintático/semântico), um sociolinguístico e um psicolinguístico.

O fenômeno estrutural diz respeito, obviamente, à estrutura da expressão, em que há diversos traços a serem considerados: a) "para" rege "mim" - as gramáticas dizem que as preposições regem pronomes oblíquos (de mim, para mim, comigo, entre mim e ti...); b) o agente da ação de fazer é "eu"; c) a representação "formal" dessa estrutura pode ser esquematizada assim: ...para (eu ler), que mostra que "eu" está ligado diretamente a "ler" e não está, portanto, no escopo de "para"; o escopo de "para" é toda a oração "eu ler".

O fenômeno sociolinguístico diz respeito ao fato de que falantes de grupos sociais diferentes têm gramáticas parcialmente diferentes (pega eu / me pega / me pegue / pegue-me; vi-o / vi ele - vi-lhe etc.). Um exemplo dessa diversidade é a forma do pronome em "para eu fazer / para mim fazer". A primeira é mais culta (mais escrita?); a segunda, menos culta (mais falada?).

A explicação da forma "mim" requer que se invoque um fator psicolingüístico. É bom ultrapassar a mera constatação de que o fato ocorre. O fator psicolingüístico diz respeito a como os falantes processam dois elementos próximos. Simplificando, pode-se dizer que eles os processam de uma forma ou de outra conforme haja ou não uma barreira entre os dois.

Quem diz "livro para eu ler" não diz "deu um livro para eu" (diz para mim). Por que? Porque "percebe" que "para eu" é um tipo de constituinte no primeiro caso e é outro tipo, diferente, no segundo. Ou: analisa diferentemente a relação entre "para" e "eu" nos dois casos, por isso, em um deles diz "mim" e no outro diz "eu".

Mas como explicar que alguém diga "para mim fazer"? Uma hipótese: a barreira entre "para" e "eu" não é percebida. O falante processa essa forma como se sua estrutura fosse para eu (ler) e não para eu (ler). E o que o leva a fazer isso? Ele "pensa" que nunca se deve dizer "para eu", porque "para eu" é errado, é horrível (aqui funciona de novo o fator sociolinguístico).

Também pode ser que faça isso porque em outros casos a mesma análise produz um resultado elegante. Considere-se "mandei-o sair". Neste caso também "ele" é sujeito de "sair", mas mesmo assim torna-se pronome oblíquo. A estrutura é mandei (ele sair) - que fica ainda mais clara com a forma verbal finita "mandei que ele saísse", uma oração sinônima.

O que aconteceu para que a forma se torne mandei-o sair? O sujeito de "sair" pulou para a posição de objeto de "mandar" - mandei ele (sair) - movimento idêntico ao que ocorre com para eu (fazer).

A proximidade entre dois elementos produz efeitos semelhantes em outros casos: em "um bando de pássaros voaram", a forma "voaram" se deve à proximidade de "pássaros"; nomes plurais próximos explicam fazem dez anos e haviam muitas pessoas.

Atenção: dizer que esses fatos podem ser explicados assim não é a mesma coisa que dizer sua construção é correta, porque correção depende de critérios históricos e sociais.

Uma aula de gramática não poderia ser um conjunto de regras ou de dicas (como se fossem regras de uso certo ou errado do garfo ou da gravata). Deve ser como uma boa aula de matemática ou de química ou de história: nessas, as equações, as fórmulas e os fatos são explicados (eu acho).

Por que não fazer o mesmo nas aulas de gramática?

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